quinta-feira, 28 de novembro de 2013

DESVENDAndo a espuma ii: de volta ao enígma da classe média
A repercussão do meu artigo “Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira” foi tamanha neste blog, que eu não pude me furtar ao dever de retornar à discussão proposta pelas centenas de comentários que ele ensejou. Como não posso responder a cada um individualmente, embora eu o quisesse e muitos merecessem, faço isto com este novo texto, desta vez um pouco mais sistemático, com o intuito de reafirmar algumas questões, esclarecer outras, e aprofundar ainda outras.
Inicialmente, gostaria de agradecer a todos os comentaristas que, mesmo os mais críticos, acabaram por valorizar a discussão provocada pelo texto, e motivaram-me a aprofundar algumas questões neste novo post.
O que eu afirmei no texto anterior é que as posições reacionárias de boa parte da classe média identificadas pela Marilena Chauí são sustentadas fundamentalmente por um “ethos meritocrático”, embora eu reconheça que não tenha esclarecido suficientemente o que seria isto, o que causou muita confusão. Pretendo clarear esta posição aqui. Então vamos lá que o caminho é longo!
Decodificando o “ethos meritocrático”
A palavra “ethos” foi usada no artigo “Desvendando a espuma...” para designar uma espécie de síntese das crenças e valores desta classe média a qual me referi. Eu penso que uma parte significativa da classe média comunga de um sistema de crenças que associa o mérito à eficiência, progresso e justiça; portanto, uma sociedade só progrediria, só seria eficiente e justa se organizada sob um regime meritocrático, que premiasse o mérito e punisse o demérito. Políticas públicas que subvertem o mérito gerariam indolência, ineficiência, estagnação e injustiça, o que, reconheçamos, é a base da maioria das críticas aos programas sociais e ações afirmativas atuais.
Acho que este sistema de crenças ficou ainda mais claro pelo teor dos comentários da maioria daqueles que, em crítica ao meu texto anterior, bradaram em defesa da meritocracia. É claro que existe um componente de “interesse” associado a este ethos, ou seja, ele não se resume a um sistema de crenças e valores; aqueles que alcançaram posições de sucesso por mérito próprio, ao defenderem a meritocracia defendem também seus interesses pessoais, mas estou certo de que fazem isto acreditando na justiça que isto representa, pois creem ser justa a posição que ocupam por ter sido conquistada pela via do mérito.
Muitos dos que defendem a meritocracia usam como referência, inclusive, suas histórias pessoais, que geralmente contam da ascensão social obtida com esforço e superação pessoal, o que mostra que este “ethos” tem a ver com o modo como se formou e se reproduz socialmente esta porção da classe média de quem eu falo. É muito comum pessoas que tiveram histórias pessoais de superação, que ascenderam na vida com muito esforço pessoal, tornarem-se meritocratas fervorosos e conservadores, com base em um raciocínio muito simples e dedutivo: "se eu que tinha poucas condições consegui, todos podem conseguir; se não conseguem é porque não se esforçaram o suficiente; e se não se esforçaram, então não merecem".
Mas, embora a história pessoal de cada um faça parte da formação do seu sistema de crenças e valores, extrapolar, por silogismo, o seu caso particular para a sociedade é um reducionismo inconsequente. Exemplos individuais não funcionam bem para extrapolações sociais, pois a sociedade é bem mais do que a soma dos indivíduos que a compõem. Esta concepção de um sistema social ser uma pura e simples agregação de indivíduos está superada na maioria das ciências sociais e humanas.
O foco central do texto “Desvendando a espuma” foi mostrar como este ethos meritocrático leva a atitudes reacionárias de parte da classe média, ou seja, como esta forma de crença na meritocracia pode fundamentar um tipo de ideologia que produz pessoas que, do ponto de vista da vida coletiva, são intolerantes, avessas à atividade política, individualistas, aparentemente insensíveis aos problemas sociais, e reativas a qualquer política compensatória ou distributivista.
Neste texto, pretendo argumentar que certas promessas da meritocracia, estas mesmas que produzem comportamentos políticos reacionários, são crenças vãs, e que a meritocracia produz uma ilusão de eficiência, de progresso e de justiça que não corresponde à realidade.
Meu propósito, porém, não é acabar com a meritocracia (eu não proporia substituir os concursos públicos, por exemplo, pelas antigas indicações pessoais), mas sim relativisá-la, mostrando que ela não corresponde ao ideal de eficiência, progresso e justiça que a sustenta como crença. Proponho-me, assim, a desconstruir suas bases racionais, mostrando a falaciosidade de cada uma destas crenças, para liberar as políticas públicas para que possam atuar sob outras bases de legitimação, para buscarem desenvolvimento e justiça por fora dos limites da meritocracia.
A ilusão de eficiência e progresso da meritocracia
Meritocracias modernas são sistemas burocráticos. O primeiro cientista social a desvendar o nascimento da meritocracia como fundamento da autoridade nas organizações modernas, esta meritocracia ungida pela racionalidade e pela ciência, foi o sociólogo alemão Max Weber. Ele Fez isto justamente ao dissecar a passagem das organizações pré-modernas, tradicionais, cuja autoridade era baseada na tradição ou no carisma, para as grandes e modernas organizações burocráticas, cuja autoridade é de fundamentação legal-racional. O mérito, portanto, e não a tradição nem o carisma, passava a ser o critério para ocupar cargos de autoridade e ter acesso a recursos de poder.
Não só as burocracias são sistemas meritocráticos, como também as meritocracias, em regimes democráticos, tendem a se burocratizarem com o tempo. A burocracia é uma força modeladora inescapável quando se racionaliza e regulamenta algum campo de atividade, como a meritocracia exige. Claro, não estou falando em meritocracias baseadas exclusivamente no desempenho de mercado, em sistemas de mercados totalmente desregulados, de uma forma tal que nem existem casos empíricos, nem nas meritocracias de regimes autoritários. Falo em meritocracias reguladas por instituições sociais em regimes democráticos, como normalmente ocorrem no mundo real, sobretudo nas democracias liberais ocidentais.
Pense em um sistema meritocrático qualquer e você verá que precisará de um complexo sistema de avaliações para estabelecer a discriminação de mérito entre as pessoas e entre as organizações. Comece a montar este sistema e você invariavelmente tenderá a estabelecer regras, hierarquias de valor, critérios, indicadores, etc. Inescapavelmente você criará um sistema burocrático, que orientará e circunscreverá as ações de seus avaliados da mesma maneira que os estatutos de servidores regem as ações dos funcionários públicos. Pessoas sob regimes de avaliação meritocrática se tornam burocratas comportamentais. Os sistemas de avaliação são as novas normas de atuação individual e organizacional, a semelhança do que fazem os estatutos funcionais das organizações mais burocráticas.
Os grandes problemas funcionais das burocracias já foram vastamente dissecados e tem a ver exatamente com a eficiência. Burocracias produzem comportamentos ritualistas e formalistas, levam à excessiva impessoalidade, criam resistência às mudanças e dificuldades de adaptação, produzem centralização, dentre outras tantas que conhecemos muito bem. Pois todas elas podem ser atribuídas também às meritocracias, uma vez que estas produzem sistemas de avaliação que burocratizam a ação.
Mas, o mais profundo efeito social da burocracia e da meritocracia, como afirmei no meu primeiro texto, é sobre a racionalidade humana. A meritocracia burocrática estimula a racionalidade formal, desautoriza as pessoas a pensar racionalmente nos fins, desestimulando o raciocínio crítico e as ações orientadas por valores e por convicções pessoais. Submetidos a sistemas meritocráticos, todos se orientam por metas e estímulos avaliativos externos, sobre os quais não tem controle. Professores e pesquisadores guiam-se pelos pontos que cada atividade sua proporciona em seu Lattes, escolas orientam-se pelos critérios de avaliação do Ideb, alunos se envolvem apenas com o conhecimento que cai no vestibular, artistas orientam-se pelo que tem demanda de mercado ou pode ser convertido em mercadoria. Assim, professores viram ritualistas e formalistas produtores de artigos, não de conhecimento; escolas viram formadoras de alunos, não de cidadãos; alunos se tornam especialistas em provas, não em saberes; e artistas já não produzem obras artísticas, e sim produtos. De alguma forma, a racionalidade meritocrática dá origem a um certo irracionalismo, a uma prisão do homem às regras e à racionalidade formal, mais ou menos no sentido do “eclipse da razão” descrito por Horkheimer, e da “gaiola de aço” a que Weber chamou as burocracias (a Iron Cage weberiana).
A meritocracia no sistema acadêmico brasileiro é muito ilustrativa desta lógica, e é preciso que eu corte a própria carne para falar disto. Mas de certa forma, todos na academia sabem que os sistemas de avaliação da CAPES e do CNPq têm levado a um produtivismo estéril, e alguns compartilharam isto em seus comentários sobre o meu primeiro artigo. Ao rankear pesquisadores e programas de pós-graduação quase que exclusivamente pela produção de artigos em periódicos, o sistema meritocrático da academia brasileira transformou a todos, pesquisadores, professores e estudantes em ritualistas e formalistas produtores de artigos. O significado do conhecimento produzido não é importante, desde que ele esteja publicado em uma revista também devidamente rankeada pela CAPES.
Os resultados deste sistema são trágicos: professores e alunos relegando para segundo plano as atividades de formação; desestímulo total à produção de livros de forma que em muitas áreas eles ou sumiram totalmente, ou são apenas adaptações de teses e dissertações, ou então coletâneas de artigos; surgimento de toda a sorte de fraude e engodo que produza artigos (compartilhamento de publicações entre pessoas que não participaram da produção, republicação de artigos com outro título, fracionamento desnecessário de produções para produzir vários artigos, dentre outros), e estímulo à esterilidade científica, à produção sem significado, sem relevância, sem substância inovadora.
As exigências de produtividade são um estímulo ao status quo, obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação. Quando se tem metas produtivas a cumprir, inovar, criar, empreender, fugir ao normal pode ser perigoso, pode ser incerto, pode ser arriscado, portanto não é desejável. O mais seguro é fazer “mais do mesmo”.
Isto não acontece somente aqui, não é mais uma destas coisas que se acha que só acontecem no Brasil. O pesquisador australiano Stewart Clegg afirmou, certa vez, que “pesquisadores que buscam legitimação profissional podem com muita facilidade ser pressionados a aprender mais e mais sobre problemas cada vez mais desinteressantes e irrelevantes, ou a investigar mais e mais soluções que não funcionam”.
Coisas da meritocracia no sistema acadêmico, levando simultaneamente à ineficiência e à estagnação/desutilidade do conhecimento. Como associar meritocracia com eficiência e progresso, se sistemas meritocráticos tendem a levar à burocratização das ações humanas, a fomentar à racionalidade formal e a desestimular a criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação?
A ilusão de justiça da meritocracia
Muitos dos comentaristas do texto “Desvendando a espuma” tentaram argumentar que não é a meritocracia em si, mas a meritocracia brasileira que é injusta porque nem todas as pessoas têm as mesmas condições de competir, porque há uma desigualdade de pontos de partida que privilegia aqueles mais bem posicionados na sociedade. É verdade, este é um problema a mais para a meritocracia, mas vou tentar mostrar que mesmo que todos tivessem as mesmas condições de concorrência, que dispusessem dos mesmos recursos, ainda assim a meritocracia não poderia, por si só, conduzir à justiça.
Primeiro, cabe destacar que estamos lidando com um conceito amorfo, controverso, “justiça”, muito difícil de ser tratado, que provavelmente terá uma conotação diferente para cada corrente ideológica, o que já é um problema para a meritocracia, pois contradiz a sua pretensão de objetividade e imparcialidade. Neste sentido, no ethos meritocrático, a defesa da meritocracia como justa é um tanto tautológica, pois para um meritocrata o conceito mesmo de justiça está associado ao mérito: “justiça é dar a cada um conforme seu esforço e sua capacidade”. Então, no ethos meritocrático, a questão não é se a meritocracia levaria ou não a uma sociedade justa; o mérito mesmo é que estaria na própria definição de justiça, e a meritocracia seria, portanto, intrinsecamente justa.
Este conceito de justiça do ethos meritocrático tem duas premissas com as quais eu não concordo: que numa meritocracia cada um, realmente, recebe o que é merecido conforme seu esforço e sua capacidade; e que, socialmente, se pode formar o todo a partir da mera soma das partes (justiça social seria uma mera soma destas justiças individuais), ignorando mecanismos sistêmicos e estruturas econômicas e sociais que operam na sociedade por sobre e além dos indivíduos.
Vou tentar desenvolver aqui a ideia de que, se a meritocracia baseia-se no desempenho e não no merecimento (portanto, depende mais de instrumentos do que de valores); se o desempenho de mercado não pode prover a justiça social; se o desempenho, em geral, e os critérios que o medem são moldados pelos poderes políticos e econômicos; e se o mérito é apenas uma convenção social e não uma substância dos seres que são avaliados, não há como a justiça ser um valor intrínseco à meritocracia, ou a meritocracia, por si só, produzir uma ordem social justa.
Como eu já havia afirmado no texto anterior, numa meritocracia o mérito é medido pelo desempenho, que muito provavelmente não indica o verdadeiro merecimento. E este desempenho, numa sociedade de economia mista como a nossa, refere-se tanto a resultados obtidos no mercado como a resultados obtidos em processos de avaliação de mérito (vestibular, concursos públicos, processos de avaliação, concorrências em editais, processos judiciais e tantos outros). A pergunta a fazer então é, será que medidas que premiam os bons desempenhos no mercado e em processos de avaliação de mérito são boas para promover uma organização social “justa”?
Bem, com relação ao desempenho de mercado, não me parece necessário maiores digressões para afirmar que ele, por si só, não pode prover a justiça. Até o pai dos liberais, Adam Smith, reconhecia que prover a justiça é uma das funções do Estado. O mercado pode até prover com abundância bens e serviços, mas não necessariamente com justiça, por isto os próprios liberais preferem tratar o mercado como uma instituição aética. As leis da oferta e da demanda se orientam pela oportunidade, não por valores morais; já vi, por exemplo, nos dias subsequentes a uma tempestade de granizo que destruiu principalmente as casas mais humildes, o preço da telha quase dobrar em função do aumento da demanda, tornando a agonia dos flagelados ainda maior. Isto é das leis de mercado, e pode até ter melhorado o desempenho das empresas de materiais de construção, mas certamente não promoveu justiça alguma.
Meu argumento para refutar o desempenho de mercado como capaz de prover justiça social não depende de qualquer análise marxista, que seria óbvio demais. Ao contrário, os primeiros a identificarem e reconhecerem as falhas do mercado como geradoras de “custos sociais” foram economistas neoclássicos – liberais, portanto - como Arthur Pigou e Ronald Coase, que desenvolveram o conceito de externalidade negativa ou custo externo (custos privados externalizados para a sociedade). Muitas políticas intervencionistas e regulacionistas são baseadas nestes conceitos, mesmo nas economias mais liberais. Os mercados, livremente, não conseguem garantir sequer as próprias condições do seu funcionamento, a concorrência, base de sua suposta eficiência, pois o oportunismo privado tende a levar à concentração de mercado, ao conluio e à busca pelo poder de monopólio. Por isto os países têm suas “leis de defesa da concorrência”, cujo nome é bem sugestivo das contradições do mercado: a concorrência é um valor dos mercados que precisa ser defendida da própria lógica do mercado.
A maioria das economias de mercado, atualmente, sobrevivem de uma armadilha perversa e inescapável. Para sustentarem seus padrões de crescimento, sem os quais estas economias entrariam em colapso, as empresas precisam vender sempre mais e para isto precisam fomentar o consumo; para fomentarem o consumo, elas precisam vender produtos que sejam rapidamente superados por outros, então, elas programam inovações que obsoletizam os seus próprios produtos, no círculo vicioso da concorrência, inovação e “obsolescência programada”. Isto gera toda a sorte de custos sociais, como o lixo que se acumula nas cidades, o excesso de carros no trânsito, a poluição do ar e dos rios, o lixo cultural, etc. Então, a busca por desempenho de mercado pode causar grandes custos à sociedade.
Nestas condições, não vejo como associar desempenho de mercado com uma ordem social justa. Portanto, o desempenho de mercado pode ser meritório apenas do ponto de vista individual, privado, na luta do indivíduo contra si mesmo, contra os seus desafios e suas limitações, mas não justifica organizar a sociedade em função dele.
Já o desempenho nas avaliações de mérito, outro pilar das meritocracias, também não é capaz de conectar meritocracia e justiça para além da concepção tautológica do ethos meritocrático. Simplesmente porque o que se chama de mérito é algo subjetivo, parcial e convencional, e por isto mesmo está frequentemente em disputa. Então, a meritocracia não pode ser intrinsecamente justa, ao contrário, o conceito de justiça de cada ideologia política é que define o que é meritório ou não.
Vou dar um exemplo simples surgido aqui mesmo neste blog, nos comentários do meu primeiro texto. De antemão, peço desculpas por usar-me como referência, mas a analogia é irresistível. Um dos comentaristas do texto “Desvendando a espuma” escreveu, elogiando-me, "ótimo trabalho do Renato, que deve ser um ótimo professor"; já outro, em sua crítica a mim e ao texto, escreveu "senhor professor, lamento pelos seus alunos".
Não tenho nenhum reparo a fazer a qualquer dos dois comentários a meu respeito, mas estas palavras dizem muito sobre o que eu escrevi. Se eu fosse avaliado no mérito docente por aquele texto, qual deveria ser a avaliação considerada? Eu tenho méritos para ser professor ou não? Certamente as avaliações de ambos os comentaristas estão balizadas por posições político ideológicas diferentes, e dizem um pouco do que cada um espera de um professor, embora digam coisas absolutamente antagônicas.
Na verdade, o que me legitima como docente foi ter passado em um concurso público, em que a maioria da banca avaliou o meu desempenho em algumas provas, segundo normas preestabelecidas, e concluiu que eu tive um desempenho melhor que os demais concorrentes. Mas nesta como em qualquer outra avaliação de mérito, não se estabelece uma "verdade"; o que dá legitimidade para uma decisão de mérito são os procedimentos. Sim, embora as pessoas individualmente avaliem o mérito com base em seus valores pessoais, como os meus comentaristas acima, do ponto de vista social, coletivo, o mérito não é um valor em si, ele é uma convenção: se convenciona o que se estabelecerá como juízo de mérito.
O judiciário é um exemplo rico do que estou falando. Na sua avaliação de mérito em um processo, o STF pode condenar um réu que obteve 5 votos como culpado e 4 como inocente. O que dá legitimidade à condenação é o procedimento da "maioria simples", mas isto não significa que se chegou a uma "verdade", a uma conclusão incontroversa, o que de fato não ocorreu se houve quatro votos pela inocência; portanto, o mérito verdadeiro da questão não foi alcançado. Observe que se o procedimento para estabelecer este mérito fosse o consenso, o resultado seria inverso. Porém, após a decisão tomada, o réu é condenado, e as decisões assumem "efeitos de verdade". Culpado! declara-se. Da mesma forma, após a aprovação no concurso público, o mérito está estabelecido, não importam as controvérsias a respeito da avaliação dos candidatos, nem o que acontece depois. E qualquer contestação, se houver, será dirigida por procedimentos, não por valores em si, não pelo mérito da questão.
É claro que eu estou falando, aqui, das sociedades que chamamos de "democracias pluralistas", estas com ideologias, interesses e valores concorrentes, que disputam e, muitas vezes, se alternam no poder. Nestas o mérito é uma convenção que é disputada politicamente. Não vou me ocupar, portanto, dos regimes autocráticos; nestes, mérito e justiça podem ter menos correlação ainda, pois o mérito é um juízo de valor feito pelo ocupante do poder, que não precisa justificá-lo racionalmente nem precisa de sistemas burocráticos de mediação. Nestes casos, o mérito é uma imposição. O autocrata não precisa de convenções nem de mediações, ele é ao mesmo tempo o juíz e a lei! No campo político, esta não é a nossa realidade, portanto, não estou me ocupando dela, embora pense que não se deva confundir a meritocracia nestas duas condições distintas. Somos uma economia de mercado com uma dita democracia pluralista, baseada na burocracia e no sistema de representação, e isto faz muita diferença, por exemplo, em relação a regimes imperiais.
O sociólogo alemão Niklas Luhmann tratou disto nas sociedades modernas, em seu livro “Legitimidade pelo Procedimento”, sobre a sociologia do direito. Lá ele afirmou que devido à alta complexidade, variabilidade e potencial de contradição dos inúmeros temas que tratamos nas modernas sociedades, é praticamente impossível se chegar a consensos, se chegar a convicções compartilhadas e se alcançar a verdade em cada coisa que é objeto de decisão. Por isto, se estabelecem procedimentos para decidir, para separar, para classificar, e se legitimam por estes procedimentos - não mais pelas convicções, como no passado - as decisões e ações. Então, se o mérito de determinada matéria é convencionado e legitimado pelos procedimentos, num tipo de sociedade como a nossa, a justiça mesma é uma convenção.
O que estou querendo dizer é que, a despeito de muitos acharem as avaliações meritocráticas (base de qualquer meritocracia) objetivas, isentas de juízos de valor, de subjetividade, de interesses, de controvérsias, de poderes, elas não o são. Portanto, o merecimento não é alcançado pela meritocracia, tampouco a justiça: o mérito é, na verdade, uma convenção, e o que lhe dá legitimidade não são valores substantivos, convicções ou verdades objetivas, mas sim procedimentos e regras. E os procedimentos usados para avaliar desempenhos, dos quais fazem parte critérios subjetivos, dependem de nossas crenças, ideologias e interesses, e estes estão frequentemente em disputa. Dependem, portanto, da política. Assim, o mérito não é algo objetivo, ele é "objetivado". Se eu fosse avaliado no meu mérito docente pelos comentaristas deste blog, provavelmente o meu destino dependesse das opiniões dominantes por aqui e do poder que elas acumularam neste espaço, e nenhum de nós poderia negar que isto está atrelado às crenças, interesses e ideologias de cada um e de cada grupo. Sendo assim, eu não deveria me sentir melhor ou pior por ser aprovado ou rejeitado pela maioria.
O “mérito”, então, não está no avaliado, e sim no avaliador. Não é algo intrínseco aquele ou aquilo que é avaliado: ele se forma subjetivamente na mente daquele que avalia e se objetiva no sistema (nos procedimentos e normas) de avaliação. Portanto, contraditoriamente, o que está em jogo nas avaliações de mérito não é o valor daquele ou daquilo que será premiado ou punido pela meritocracia, mas os interesses, crenças, ideologias e poderes daqueles que avaliam e do sistema de mérito que eles representam. Então, é aí que se deve buscar a justiça, não na recompensa ou não pelo mérito.
Por isto eu escrevi que, apesar da meritocracia escamotear as reais operações de poder, os poderes econômico e político, não raras vezes, é que estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos. Como desempenho e mérito são convencionados, e convenções são disputadas politicamente, a meritocracia opera as mesmas relações de poder e dependência as quais ela veio pretensamente combater.
O real valor e o lugar da meritocracia na atualidade
O real valor dos sistemas meritocráticos ainda existentes nas sociedades modernas não está associado às crenças do ethos meritocrático expressas neste texto, que associam mérito a eficiência, progresso e justiça, e que depositam na meritocracia a possibilidade de redenção da raça humana da ingerência indevida e perniciosa da política e dos políticos. Não, lamento dizer, mas a realidade é exatamente o contrário, os sistemas de mérito e as burocracias modernas é que estão a serviço dos sistemas políticos, sobretudo nas democracias pluralistas típicas dos países ocidentais.
Como defendeu Paul du Gay no seu “In praise of bureaucracy”, nestes sistemas políticos, como já frizei acima, onde interesses, valores e ideologias convivem e disputam cotidianamente a possibilidade de influir nos destinos da nação, e frequentemente se alternam no poder, os sistemas de mérito baseados em valores, procedimentos e critérios pré-convencionados, tal como se descreveu aqui, garantem uma certa mediação imparcial dos conflitos típicos destes regimes, evitando que o Estado seja apropriado privadamente a cada vez que um novo grupo político assume o poder. Assim, existem concursos públicos e estabilidade no emprego para o funcionalismo público, não por que seja necessariamente mais eficiente obter e manter funcionários desta forma, ou que este seja o critério mais justo ou mesmo que assim as ações públicas serão mais progressistas. Não, eles existem para dar alguma estabilidade às organizações de Estado quando o poder político troca de mãos.
Não há outra razão para que as burocracias, que são os típicos sistemas meritocráticos, sobrevivam até hoje e tenham, inclusive, recrudescido nas últimas décadas, quando todos sabem, desde os idos anos de 1950-60, que elas são ineficientes, perdulárias, pesadas, rígidas e disfuncionais para a promoção do desenvolvimento e da justiça. A burocracia e a representação política são os dois pilares das democracias pluralistas, a versão moderna do liberalismo político.
Mas veja bem, este valor associado à meritocracia não a exime de todos os seus defeitos já apontados, e não tem nada a ver com a crença que muitos têm nela, ligadas ao ethos meritocrático que eu analisei aqui. Então, muitas políticas pretensamente meritocráticas, atualmente, são desenvolvidas e implantadas pelas razões erradas, porque comungam das crenças erradas e pensam que podem promover eficiência, desenvolvimento e justiça com sistemas meritocráticos. Ledo engano, promoverão exatamente o contrário. De outro lado, outras tantas políticas que operam no campo dos valores substantivos, que perseguem outras concepções de justiça e desenvolvimento, por exemplo, são combatidas por aqueles que comungam deste ethos meritocrático. Portanto, defende-se a meritocracia pelas razões erradas, e usa-se-a politicamente por fundamentos igualmente errados.
Se bem compreendido, este valor que os critérios de mérito tem para as democracias pluralistas jamais poderia levar a uma posição política reacionária, ou a qualquer tipo de comportamento intolerante em relação às diferenças ideológicas, de valores e de interesses, ou ainda a qualquer comportamento reativo à atividade política, como tem acontecido com parte da classe média que comunga daquele ethos meritocrático do qual tenho falado. Ao contrário, se este tipo de sistema de mérito ainda existe para garantir a pluralidade e a alternância de poder, ele deveria produzir mentalidades tolerantes, reconhecedoras do pluralismo democrático, conscientes do caráter meramente convencional e formal do mérito, e sabedoras de que o espaço público da política, e não o microespaço privado do mérito em si, é que é o legítimo locus coletivo para se buscar o desenvolvimento e a justiça social. Portanto, políticas não meritocráticas podem ser mais democráticas, desenvolvimentistas e justas.
Finalmente, mesmo reconhecendo o que alguns propuseram, que um sistema só seria mesmo meritocrático se todos partissem do mesmo lugar, se todos tivessem as mesmas condições de concorrência, tenho convicção de que mesmo assim a meritocracia não daria conta das suas promessas de eficiência, progresso e justiça. Como tentei mostrar aqui, qualquer sistema exclusivamente meritocrático com o tempo se retroalimenta para produzir a desigualdade e a exclusão, para criar círculos viciosos baseados na racionalidade instrumental e formal, para criar comportamentos ritualistas e formalistas, para fomentar práticas fraudulentas, e para criar estruturas de poder paralelas que controlam as avaliações e forjam desempenhos. Sistemas puramente meritocráticos deformam a sociedade e afastam-na do desenvolvimento humano e da justiça social.
Mesmo que as democracias pluralistas precisem que alguns espaços públicos sejam ocupados por critérios de mérito, para garantir a estabilidade e regularidade das ações do Estado face à alternância de poder, isto não significa que elas devam ser sistemas sociais meritocráticos. A meu ver, a meritocracia implícita no ethos meritocrático continua a ser ineficiente, reacionária e injusta. Portanto, a meritocracia não é nem o remédio "contra" a política, nem uma diretriz para a política pública. Qualquer meritocracia é debitária da política, ela opera sob juízos de valor relativos ao mérito que são políticos e, em parte, a meritocracia burocrática é uma espécie de sustentáculo das democracias pluralistas e representativas. Nada mais! Nada de eficiência, progresso ou justiça lhe são intrínsecos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Prefeito que não acabar com lixões pode ficar cinco anos na cadeia [?] !!

O prazo para os prefeitos de todo o Brasil acabarem com os lixões e tomarem outras providências relacionadas à gestão do lixo produzido nos municípios que governam está logo ali. Por determinação da Lei Nacional de Resíduos Sólidos (nº 12.305/2010), de autoria do Ministério do Meio Ambiente, os gestores municipais devem elaborar, até 2 de agosto do ano que vem, um plano de gestão integrada dos resíduos sólidos, focado no fim dos lixões e construção de aterros sanitários, além de implantar a coleta seletiva e promover a educação ambiental. A nova lei prevê ainda aos municípios regular o setor produtivo quanto ao manejo e disposição final dos resíduos e promover a inclusão social dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis.
No entanto, a realidade dos municípios baianos e depoimentos de prefeitos entrevistados pelo CORREIO mostram que dificilmente as determinações da lei serão cumpridas dentro do prazo, o que pode acabar complicando a vida dos gestores. É o que afirma a promotora de Justiça Coordenadora da Câmara Temática de Saneamento do Ministério Público do Estado da Bahia (MPE-BA), Karinny Guedes. “Após o prazo, os prefeitos poderão ser responsabilizados judicialmente, inclusive, por prática do crime. O desejável é que (os prefeitos) se conscientizem não só das imposições legais, como também das nefastas consequências aos munícipes da existência dos famigerados lixões”, afirmou.
A promotora lembrou que a legislação atual prevê duras sanções aos gestores negligentes. “A Lei nº 12.305/2010, o Decreto nº 7.404/2010 e a Lei nº 9.605/98 preveem sanções como multa e prisão para os gestores municipais que descumprirem a legislação atual. Mas a aplicação de tais penalidades depende da constatação de que a omissão do gestor é injustificada”, adianta. De acordo com Karinny Guedes, as multas variam de R$ 5 mil a R$ 50 milhões e a pena de prisão prevista para o crime é de um a cinco anos de reclusão.
Lixões -  A realidade baiana é bem distante da situação ideal desenhada pela lei. Apesar de ter sido sancionada em 2010, segundo dados da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano (Sedur), cerca de 80% dos municípios do estado ainda têm como disposição final os vazadouros a céu aberto, como são tecnicamente chamados os lixões, ou os aterros controlados, espécie de intermediário entre os lixões e aterros sanitários considerados inadequados para dispor os resíduos por serem lesivos ao meio ambiente e ao solo.
É o caso, por exemplo, do município de Seabra, na Chapada Diamantina. Todos os dias, sete caminhões lotados despejam resíduos em um lixão que já existe há cerca de 20 anos, localizado às margens da BR-242, a cerca de 3km do município. O prefeito José Luiz Maciel Rocha (PSB), que está no segundo mandato, admitiu já ter perdido a conta da quantidade de lixo jogado no local. “Não sei quanto é, mas é muita coisa. Tem muito tempo que se joga tudo ali”, disse.
Com dívidas com o INSS da ordem de R$ 20 milhões, o prefeito afirmou ter dificuldades para implantar a coleta seletiva. “Estamos fazendo todos os esforços para tentar cumprir com os prazos. Mas além do prefeito, tem que ter a parte de consciência da população. Por isso pretendemos começar pela educação ambiental”, explicou.
Também na Chapada Diamantina, outro município que enfrenta dificuldades para resolver o problema do lixão é Lençóis, conhecido pela vocação turística e pelas belas paisagens. O lixão do município fica a 8 km do centro do município, na BA-850, rodovia estadual que liga a cidade à BR-242. Sem recursos, a prefeitura aposta em encontrar solução conjunta entre os municípios do chamado Consórcio Chapada Forte.
“A realidade dos municípios é bem parecida, todos têm lixão e nenhum tem caixa para construir um aterro próprio”, afirmou a prefeita Moema Rebouças (PSD). O plano que está sendo elaborado para a cidade prevê a implantação de uma fábrica de reciclagem. Sobre as possíveis punições, a prefeita afirmou que se preocupa, mas que está fazendo o possível para cumprir os prazos: “É de interesse de todos nós”.
Em Serrinha, no Centro Norte do estado, o prefeito Osnir Cardoso Araújo (PT) demonstrou preocupação com os prazos estabelecidos pela lei, afirmando que “fogem à realidade” dos municípios baianos. “Acabo percebendo dois erros na burocracia brasileira. Deputados, por pressão externas, acabam fazendo leis que municípios não aguentam. O outro erro é que há muito controle externo, o que acaba engessando a administração” criticou. “Ainda bem que a lei prevê isso, que é importante para o meio ambiente, mas não vejo como uma solução buscar punir os prefeitos em vez de abrir um debate mais franco”, questionou.
Para conseguir cumprir o prazo, o prefeito aposta em duas frentes: na aprovação de uma lei, em tramitação na Câmara dos Vereadores, punindo quem jogar lixo nas ruas e despejar os resíduos em lugares inadequados e na construção de um aterro regional.
O prefeito de Barreiras, Antônio Henrique de Souza Moreira (PP),questiona o prazo da Lei Nacional de Resíduos Sólidos. “Eles vão ter que dar mais um prazo. Isso tem que ser feito, não resta dúvida, mas estou achando o tempo muito curto”, disse. “Eu não conheço sequer um município, dos 417 da Bahia, que trate seu lixo como deveria”, afirmou.
Em Itacaré, a falta de recursos também acomete o município sulista. O prefeito Jarbas Barros (PSB) não divulgou a situação das contas do município, mas limitou-se a informar que precisa regularizar a situação no cadastro da União de municípios inadimplentes (Cauc). Segundo ele, a falta de informações prestadas pela gestão anterior levou o município ao cadastro, emperrando o repasse de recursos do governo federal. “A situação já deve ser regularizada nos próximos meses”, disse.
O prefeito de Itabuna, Claudevane Moreira Leite, conhecido como Vane do Renascer, também critica o rigor do Ministério Público e o do MMA. “Esse prazo está preocupando todos os municípios, porque a situação aqui no estado é, em geral, muito ruim. É claro, a lei precisa ser cumprida, mas a Justiça, o Ministério Público e a União também devem ver as dificuldades que os municípios estão passando”, reivindicou.
Faltam Técnicos A prefeita de Valença, Jucélia Sousa do Nascimento (PTN), critica o prazo da lei e explica que a falta de técnicos capacitados para construir bons planos de gestão dos resíduos é um problema generalizado. “Não tem como cumprir esse prazo. Vai ser prorrogado, não é possível”, reclamou. “Os municípios têm tido dificuldade, porque não há técnicos capacitados e não temos nenhuma orientação do ministério”, criticou. Sobre a falta de técnicos, o Ministério do Meio Ambiente informou que começou a capacitar 400 profissionais, este mês, para ajudar os municípios a implantar seus planos de resíduos.
Municípios com aterro sanitário investem em outras ações
Municípios como Juazeiro, no Norte do Estado, e Barreiras, no Oeste, já possuem aterros sanitários, mas ainda lutam para melhorar as condições de gestão dos resíduos sólidos com a implantação de ações de coleta e educação ambiental, por exemplo. No ano passado, o prefeito de Juazeiro, Isaac Cavalcanti (PC do , conseguiu verba do governo federal para fazer a “remediação” do lixão, que existe há 20 anos.
O lixão ficava na estrada para a Ilha do Rodeadouro, a cerca de 15km do município. A ilha é uma das mais frequentadas do Rio São Francisco e possui vocação turística. Cavalcanti também garantiu recursos para construir um novo e moderno aterro sanitário, com capacidade para produzir energia.
O prefeito de Barreiras, Antônio Henrique de Souza Moreira (PP), admite que o aterro sanitário não foi tratado como deveria e agora está sendo recuperado. Na cidade, disposição de contêineres em alguns bairros da cidade evita que sacos com lixo fiquem espalhados pelas ruas.
Cidades buscam consórcios, mas evitam aterros nos seus limites
Municípios do Sul da Bahia, como Itabuna e Itacaré, também apostam no modelo de consórcio regional para dar fim aos seus lixões. Mas ainda não há definição onde será instalado o aterro sanitário comum às cidades. O prefeito de Itacaré, Jarbas Barros (PSB), quer recuperar a área que recebe os resíduos do município. “A nossa ideia é fazer uma central de referência no tratamento dos resíduos sólidos e tornar isso uma atração turística”, aposta.
Em Itabuna, há um lixão que já perdura há pelo menos 15 anos, próximo ao distrito de Ferradas. De acordo com o prefeito Claudevane Moreira Leite, conhecido como Vane do Renascer, a prefeitura realiza processo licitatório para contratar uma empresa privada para elaborar o plano de saneamento ambiental e resíduos sólidos.
No outro lado do estado, dívida com INSS impede a prefeitura de captar recursos para cumprir as regras da nova lei do lixo na cidade, que recebe multidões durante o São João. Apesar disso, a prefeita Karina Borges Silva (PSB) prevê que o plano de gestão dos resíduos do município ficará pronto em março de 2014.
A ideia, inicialmente, seria depositar o lixo em um aterro licenciado, em outra cidade, pelo menos enquanto a prefeitura não corrige o déficit nas contas.
Fonte: Victor Longo/JusBrasil 


Genuína discriminação dos presos pobres

Existe base legal para autorizar o preso gravemente enfermo a cumprir pena em sua residência (LEP, art. 117). Por que Genoíno pode cumprir a pena em casa e os pobres miseráveis não, estando em situações absolutamente iguais?
José Genoíno, por razões humanistas, foi autorizado e cumprir sua pena em regime domiciliar. Sua doença está comprovada (por médico público). Existe base legal para autorizar o preso gravemente enfermo a cumprir pena em sua residência (LEP, art.117). Não contesto o deferimento do regime domiciliar para José Genoíno, sim, a genuína discriminação dos presos pobres. Dos números do Depen consta que 3.680 presos estão sob tratamento dentro dos presídios. Muitos desses presos contam com doença grave. Poucos, no entanto, são autorizados a cumprirem a pena em casa. Aliás, poucos também são os estabelecimentos penais que possuem unidades de tratamento (90, em mais de mil presídios).
Por que Genoíno pode cumprir a pena em casa e os pobres miseráveis não, estando em situações absolutamente iguais?
A desigualdade ocorre em razão de um princípio não inscrito nas leis nem nas constituições que reconhece a periculosidade do preso pobre (ele é presumido perigoso, por isso seus direitos são negados). A periculosidade do réu ou preso pobre é presumida (por muitos operadores do sistema punitivo). Frequentemente, de forma absoluta. Presunção irreversível. Na sua função de semáforo, se o juiz dá sinal vermelho para essa barbaridade, ela se detém; se o juiz dá sinal verde, ela se amplia.

Há vários momentos para se detectar essa periculosidade: a mídia difunde (subliminarmente) a ideia de que todos os assemelhados ao criminoso jovem negro são perigosos; para o sistema punitivo, a periculosidade presumida nasce no momento em que ele entra em contato com um agente do sistema. Uma vez presumido perigoso, num verdadeiro direito penal de autor, as portas se fecham para ele (seus direitos passam a não ser reconhecidos). É o princípio da periculosidade do preso pobre que explica a ocorrência dos pouquíssimos casos de regime domiciliar para pobre.
Fonte: JusBrasil

domingo, 17 de novembro de 2013

Suécia fecha quatro presídios por falta de detentos

Taxa de ocupação do sistema carcerário do país vem caindo desde 2004

Suécia
Vista da cidade de Estocolmo, na Suécia (Thinkstock)
A Suécia passa por uma drástica queda no número de prisões nos últimos dois anos e, por esse motivo, as autoridades decidiram fechar quatro penitenciárias e um centro de detenção, informa reportagem do jornal britânico The Guardian. "Vemos um declínio extraordinário no número de detentos. Agora temos a oportunidade de fechar parte de nossa infraestrutura", disse Nils Oberg, diretor de Serviços Penitenciários do país.
O serviço penitenciário sueco fechou presídios em quatro cidades: Aby, Haja, Bashagen e Kristianstad. Dois desses prédios devem ser vendidos para a iniciativa privada e os outros dois devem abrigar temporariamente outras instituições estatais.

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O número de detentos na Suécia vinha sendo reduzido em cerca de 1% ao ano desde 2004. Entre 2011 e 2012, a redução ampliou para 6% ao ano, taxa que deve ser mantida em 2013 e 2014. Oberg declarou que a abordagem liberal adotada pela Suécia quanto às prisões, com prioridade na reabilitação de prisioneiros e trabalhos voluntários, influenciou a queda de ocupação no sistema prisional do país.
"Nós acreditamos que os esforços em investir na reabilitação e prevenção de recaída de crimes tiveram um impacto", disse Oberg. Tribunais suecos vêm adotando penas mais brandas para crimes relacionados com drogas após uma decisão da Suprema Corte em 2011, explicando, pelo menos, parte da queda brusca do número de detenções.
O governo sueco, no entanto, vai manter a opção de reabrir pelo menos duas das prisões fechadas se o número de detentos voltar a crescer. "Nós não estamos no ponto de concluir que esta [queda das prisões] é uma tendência de longo prazo e que é uma mudança de paradigma", disse Oberg. "O que temos certeza é de que a pressão sobre o sistema de justiça criminal tem caído acentuadamente nos últimos anos", concluiu.
População carcerária – Segundo dados compilados pela organização World Prison Brief (WPB), os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo, com 2 239 751 de detentos. A China ocupa o segundo lugar com 1 640 000 pessoas atrás das grades. Os presos da Rússia totalizam 681 600 pessoas e, em quarto lugar, está o Brasil, com 548 003 encarcerados. A Suécia tem 4 852 presos.
Fonte: FACEBOOK

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira
A primeira vez que ouvi a Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente. Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível. Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base. A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão. Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”. Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? E mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social. Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana. E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa. A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe média - ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta. Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta! Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso? Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais. Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma. Então deveria haver outra interpretação para isto.
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil. Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui. Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia. 
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora. 
Assim, boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de mérito.
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras? Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas. O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar. O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais, etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada. Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática. Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios. Acho que isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média. 
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo. Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas. E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática. Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte; se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época. Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas. A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa. Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político. 
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição. E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida. Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas. 
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço. Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais. 
Aliás, tenho certeza de que todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas. Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social. Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa. 
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social. 
a) A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.
b) A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos. 
c) A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas. Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.
d) A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem. O Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado. O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mudo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam. 
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser. Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
e) A meritocracia escamoteia as reais operações de poder. Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário. Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico; bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante. Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política. Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política. Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
e) A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
f) A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma literatura calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas. Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq. 
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
g) Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho. O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante. Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos. Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo. Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo. Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia. 
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.


Enquanto houver Democracia, o Judiciário é a esperança

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